sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A ÁGUIA RÉGIA

Nesta gloriosa era que nos coube, e que ninguém como nós mereceu, dando de barato as gerações e gerações que nos precederam e que nada fizeram para a termos, à maior parte da maquinaria só falta falar, à menor da menor parte não resta outra alternativa que falar: mudaram-se os ventos, mudaram-se os tempos verbais, mestre Jean de La Fontaine. No tempo em que as avionetas falam, depois de um curso de piloto particular, e de longas negociações, acompanhadas de documentação muito pormenorizada e autenticada, o jeitoso e prometedor mecânico David Neves, saiu brevetado, com suma distinção e louvor, dando-se logo a conhecer a uma das ditas, de que não tirara os olhos desde o começo das aulas mas que nunca calhara na instrução, eu sou o David, deixa-me dizer já porque gosto tanto de ti: essa tua cor vermelha debruada a branco e esse nome, Águia Régia, Regina para os amigos?, és muito querida, facilita, para mim serás sempre a Águia, Águia Regina, o.k., e na torre também sabem?, óptimo, então podemos começar, estás preparada não estás?, ah, falta a autorização e o capacete, vou já tratar disso, entretanto podes por os motores a trabalhar. Disseram os do hangar trazendo-a para a pista: assim começam os grandes amores, ninguém vai conseguir travá-los. De facto, as horas livres, algumas forçadas, foram destinadas à consolidação das matérias e técnicas e habilidades aprendidas e treinadas e desenvolvidas, e a uma conversa interminável entre o homem e a aeronave, com juras de procedimentos adequados e de desafios a tentar, e um tratamento, em terra, digno de um apaixonado: sentes-te cansada? que te falta, minha querida? de que precisas?
- Temos o homem – concluíram os altos comandos. Para a experiência em voo nocturno entregamo-lo ao Antoine Saint-Exupéry, que o põe apto em duas ou três entregas aeropostais do correio do sul e o apresenta ao Principezinho, se não o levar antes à terra dos homens, capaz disso é ele, e nós fazemos de conta, nem lha apresentamos, prepare ele o rapaz.
Que melodia escutam os nossos ouvidos, meu amor? o Antoine? o Principezinho? que mais? Estamos prontos, não estamos? e tu não tens medo do escuro, pois não?
Não e estavam e tudo aconteceu conforme os planos de voo programados, entregas sem falhas com uma deriva pelo asteróide B612, onde o Principezinho guardava uma surpresa no cartapácio das suas porfiadas investigações geométricas, isto interessa-nos, Regina, e que era “se um triângulo tem três ângulos rectos, então é equilátero”. Antoine observou que devia haver ali qualquer confusão, também nós empanturrados de triangulações e de triângulos, mas aquela maravilhosa e impassível criatura continuou a falar-nos do seu espaço, e nós pusemo-nos a falar com os nossos botões e a tentar perceber antes de dar voz à lucubração e à controvérsia, aqui no hangar, com outra calma, devemos imaginar nesse caso, desculpem a interrupção, o alto comando tem uma missão para o David. Adeus Antoine, adeus Geometria, vou já.
Tudo muito bem explicado no painel da sala de controlo, ficámos a aguardar determinadas características da meteorologia, previstas para daí a uns dias, e que vieram a concretizar-se, bendito seja Deus, nem tudo são palpites, é agora, boa sorte, arrancamos por uma noite de breu, guiados pelo automático e mais uns periféricos montados a propósito e que deixaram a Regina um espanto, computador de bordo sempre alerta, vozes da Terra a perguntar por isto e por aquilo, a anunciar a próxima etapa e a próxima manobra e a próxima musiquinha para aquecer, também, são uns amores, a Regina agradece, assim vamos, olhos nos instrumentos e no cone de luz à frente do motor, ouvidos atentos ao ruído ambiente e às ordens e informações da base, sem qualquer ideia sobre o aspecto do espaço que atravessamos, não seja esse o problema. Mais apelativos alguns dos gráficos e letras e números e vozes no painel de bordo alertaram-nos para a proximidade do B612 e para a urgência de preparar as câmaras para fotografar e filmar e captar os triângulos do Principezinho que, contactado, acedeu de imediato ao projecto e vos vai enviar uma mensagem numa flor, não esqueça o alfabeto aéreo de saudação na aproximação mínima possível, concentração e atenção máxima, comandante, nós não podemos fazer tudo, aí inverter a marcha para Terra, entendido? Regina, vai começar a função, manda beijinhos quando eu começar os acenos e as piscadelas de olhos, adeus Principezinho, beijo a tua flor, as fotos estão um espanto, não tarda nada a base envia-tas, não sei se os reconhecerás espalmados no plano vertical, mas, para nós, dão uma ideia melhor do que seja um triângulo, desculpa o atrevimento.
Que ruído é este, Regina? os periféricos entraram em parafuso? ou é o motor? ou falhei a inversão? ou chocamos com algum meteorito? ou é poeira estelar a passear-se pela fuselagem? ou somos seguidos por algum espião?
- Calma, comandante, a inversão foi perfeita, está de regresso, vamos entrar na segunda etapa da missão.
Eu não acredito: da minha Regina, por este breu fora, que me parece menos breu, há algumas auroras ou engano-me?, soltam-se estrelas de cinco pontas gigantes vermelhas, anãs brancas, castanhas e vermelhas, anãs no interior das gigantes ou ao lado ou formando sucessões crescentes ou decrescentes ou alternadas, encimando espirais ou suspendendo-se de molas helicoidais, estrelas-cometas de caudas variadas, estrelas irregulares quadrangulares (que setas), hexagonais e heptagonais, estrelas de papel, estrelas do mar, esferas, bolos-rei, rosas dos ventos, planas ou tridimensionais, ramos de azevinho, laços, árvores calçadas com polainas e luvas compridas cravadas de diminutos diamantes luminosos delimitando avenidas ou largos, figuras de anjos e arcanjos e profanos, racionais ou irracionais, e, não pode ser, em cada triângulo espalmado do Principezinho o Menino, Nossa Senhora e São José, e tanto, tanto triângulo, pois, é Natal, 23 de Dezembro, não tenho olhos para o néon de tantas cores, nem consigo dar conta do espectáculo, à frente, à direita, à esquerda, atrás, com os raios laser a esgueirarem-se entre as formas e eles próprios a esboçarem desenhos e construções, acompanhando o som claro e quente das suaves e expressivas e conhecidas melodias natalícias, o que vejo não é deste mundo, engano claro, não é para ouvirem, e os instrumentos? e a Regina?
- Não se preocupe, comandante, estamos atentos, goze o seu trabalho.
Mas não é suposto existirem estrelas no céu a uma hora destas? Onde estão o Sol, a Alfa Centauro, a Polar, a Sírio, a Vega, a Aldebaran, a Castor, a Intrometida? e as Perseidas? e as nebulosas? e os cometas? e os planetas? e os satélites artificiais? Ora, David, diz Regina, claro que é suposto, e existem, mas quem tem tempo para olhar o céu à velocidade a que o mundo corre e nós com ele, e que tenha nem sempre se proporciona, hoje há cidades e lugares que não largam o capacete da poluição por questões de segurança, até eu, quantas vezes prefiro o Rui Veloso, então enclausurada no hangar. Do que se trata é de distribuir a mensagem ia a dizer rente à cabeça de cada um - pare para ver, olhe que lhe fica bem uma alma nova, boas festas: repara David, aí vão elas, em Times New Roman, Arial, Papyrus, Black Chancery, Signature, tens razão é inglês a mais e eles não merecem tanto, passemos ás letras góticas e admira a profusão de cores e a alegria desta breve expressão entre todos os objectos, deles se destacando e marcando as canções que se não cansam, a cintilar no novo céu concretizado por quem planeou a missão e a levou a cabo, olaré. É caso para lembrar o poeta António Ferreira (1528, Lisboa – 1569, Lisboa):
“e os que depois de nós vierem, vejam
quanto se trabalhou em seu proveito,
porque eles para os outros assim sejam”.
Não há dúvida, esta é uma noite de prodígios, a poesia não podia faltar, Regina, junto outra do teu poeta, se calhar não vem a propósito: “Floresça, fale, ouça-se e viva / A Portuguesa Língua (…) / Se até aqui esteve baixa, e sem louvor / Culpa é dos que mal a exercitáram (…)”. Noite que vai alta, se não erro é o azul envergonhado do crepúsculo, ajuda o cansaço dos meus olhos (e do meu corpo, há quanto partimos?) a perceber a fita curta e estreita à frente do teu nariz, lá em baixo, confere?, o.k., vamos aterrar.
- Alguém nos explica onde estamos?: N 40º 27´,20 ; W 007º 42´,41 ; altitude 1290 pés; temperatura exterior –2º Celsius.
- Está no aeródromo de Pinhanços, comandante. Parabéns, a missão foi um êxito, esteja atento aos noticiários e aos jornais. Estacione a Regina e proteja-a bem, tem o material na parte de trás do cockpit. David, aguarde: a Vóinha vai buscá-lo no honda jazz cool para a festa da consoada. Bom Natal. Esperamo-lo para a passagem do ano.

Luis Alves Martins

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