quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O envelhecimento demográfico põe à prova a solidariedade entre gerações

Depois de uma época em que o alarme era a explosão demográfica, agora no Ocidente passou para primeiro plano o problema do envelhecimento demográfico. O prolongamento da esperança de vida e a queda a pique da natalidade vão dar origem a crescentes desequilíbrios económicos e sociais, que ameaçam a solidariedade entre as gerações.
Porque razão o envelhecimento demográfico é realmente um problema afectado por um carácter negativo?
Em si mesmo, o aumento da esperança de vida, concorrente com o número da população idosa, não está afectado por nenhuma carácter negativo, pelo contrário, o carácter é indubitavelmente positivo. E, mesmo assim, não terá a velhice, enquanto tal, um indelével sinal positivo? A questão aparece já discutida nas primeiras páginas daquele que é talvez o mais célebre de todos os escritos de Platão, A República.
Uma atitude pessoal
Sócrates encontra muito envelhecido Céfalo, pai de Polemarco, que o convida a sua casa. Céfalo confessa a Sócrates que, conforme foi envelhecendo, o seu apreço pelos prazeres sensoriais esgotaram-se, enquanto que por sua vez se tornou maior o interesse pelos prazeres da conversa. Não é esse o caso, reconhece Céfalo, da maioria dos seus amigos já entrados na velhice, os quais se lamentam pela perda dos prazeres sexuais. Contrariamente à opinião dessa maioria, Céfalo acompanha o sentimento de quem vê na extinção da violência passional da juventude uma libertação da pior tirania e, juntamente a isso, um poderoso guardião do sossego e da paz de ânimo. Mas a maioria dos anciãos que te ouvem, observa Sócrates, acreditam que aguentas bem a velhice porque és dono de uma grande fortuna, já que, segundo se diz, as riquezas trazem grandes consolos. A resposta de Céfalo é que quem opina desse modo tem razão, mas não tanto como se imagina, pois as riquezas não suavizam o humor dos homens insensatos. Tomadas no seu conjunto, as ideias que Platão põe na boca de Céfalo acerca da velhice, podem resumir-se em três pontos: 1) a situação económica do ancião é necessária, mas não suficiente, para determinar a respectiva atitude perante a velhice; 2) em resolução, essa atitude é essencialmente íntima, pessoal; 3) o tratamento platónico da velhice não inclui a dimensão social, e mais em concreto a intergeracional da vida dos idosos. A carência da dimensão social, e especialmente intergeracional, no tratamento que Platão faz da velhice não ocorre na Antiguidade Clássica, nem na Idade Média, pelo menos no âmbito da praxis política. Assim o provam instiuições tais como o Conselho de Anciãos, ou a Gerusía de Esparta e o Senado Romano, com atribuições de grande responsabilidade e longo alcance. Tudo isto interessa aqui pelo carácter intergeracional do serviço que uma pessoas de relevo e de idade avançada prestam institucionalmente às outras que na sua maioria pertencem a outras gerações.
Colaborar com a experiência de vida
Também no ámbito da teoría política, não só na praxis, pode assinalarse o carácter intergeracional e o sinal positivo da concepção aristotélica da prudência. Esta virtude, segundo a entende o filósofo, inclui entre as suas partes integrantes a experiência vital conseguida com o decorrer dos anos, aproveitada não só pelo próprio mas também por quem dele a recebe e que mais necessitado está dela por ser de menor idade. As razões que alguns psicólogos contemporâneos invocam para atribuir um sinal negativo à velhice referem-se à velhice em geral e, enquanto tal, não incluem a forma de a viver que uns padecem e da qual outros estão livres. Estes psicólogos atribuem a todos os anciãos, pelo puro e simples facto de serem velhos, uma situação psíquica fundamentalmente dominada pelo egoísmo e pelo sentimento de uma irreprimível solidão. A arbitrariedade desta maneira de conceber o carácter geral dos anciãos é inteiramente equiparada ao abuso de quem pensa que o egoísmo e a irreprimível solidão constituem características fundamentais da psicologia juvenil. Nestes termos podemos recordar o título de uma das mais conhecidas novelas de Ernest Hemingway, O Velho e o Mar. Dificilmente podemos esquecer o repentino calafrio que sentimos ao ler a frase inicial: “Ele era um velho que pescava sozinho no seu barco”. Mas depois o relato que assim começa, longe de ser uma crónica de angústias e sofrimentos de um velho e solitário escador, é a história da lealdade e a amistosa ajuda que o ancião recebe de um generoso rapaz e que depois lhe corresponde na mesma nobre medida.
Contribuem ou apenas recebem?
Ora bem, se a razão do carácter negativo do envelhecimento demográfico não é a própria velhice em si, nem tão pouco está no aumento dos anciãos, será necessário perguntar se a razão se centra no facto de os anciãos contribuirem pouco para o bem estar social que, em definitivo, são apenas beneficiários daquilo que os outros membros da sociedade fazem por eles. Encontramo-nos então com a questão intergeracional: As pessoas de idade contribuem para a melhoria dos níveis de vida ou apenas beneficiam dessa melhoria?
Vejamos quatro respostas a esta mesma pregunta, das quais três estão em forma de parábola, mas a sua interpretação é bem simples.
1. No seu romance “The fixed period” (1982), Anthony Throlopp conta que numa ilha imaginária os habitantes que chegam aos 67 anos de idade são obrigatoriamente internados num local, denominado Necrópolis, onde devem dedicar-se a meditações pré-eutanásicas, convencendo-se de que a sua morte é justificada e exigida pela sua própria dignidade, já que se tornaram numa carga para os outros moradores da ilha. Uma vez decorrido o prazo fixo de um ano, procede-se à anestesia com clorofórmio e à incineração imediata. Como quem diz: “morto o cão, acabou-se a raiva”. Sem prova de nenhum género Throlopp admite, por um lado, a onerosidade de todos anciãos para os que não o são e, por outro, a incapacidade de todos os que não o são para prestar algum serviço aos que o são. À gratituidade destas suposições deve-se acrescentar o erro de ter por indigna a situação de quem não está em condição de poder ser útil aos outros. Certamente, não se encontram nesta situação todos os homens que cumpriram os 67 anos de idade, mas os que lá chegaram não perderam a dignidade específica da pessoa humana, um valor essencialmente intrínseco a todos os homens e que, como tal, deve ser respeitado em qualquer circunstância.
Regra de ouro
2. Simone de Beauvoir relata em Vieillesse (1974) uma eloquente parábola centrada numa família de camponeses onde o avô é obrigado a comer sózinho diariamente, num estábulo. Um bom dia o neto está a martelar nuns troços de madeira e, ao vê-lo nesta cupação, o seu pai pergunta: Que estás a fazer? O rapaz responde: Estou a construir-te um estábulo para que possas comer nele quando fores tão velhinho como o avô. Desde logo o relato tem tanto de edificante como de intencionada é a resposta do neto no seu claro paralelismo com o comportamento do pai. A história termina com o regresso do avô à mesa da família. A “lição”, ainda que não intencionada, foi efectivamente aproveitada. Podemos interpretá-la no sentido em que, ainda que o avô chegue de facto a ser uma carga, a família deve manter-se unida a ele, pois ele mesmo não é de facto uma carga. E quem o abandona merece o mesmo tratamento “quando forem tão velhos como o avô”. Vingança ou simples justiça? Em qualquer caso, Simone de Beauvoir não o decide: e, apesar do ateísmo pessoal da autora de Vieillesse, a moral da sua história é uma aplicação da “regra de ouro” do catolicismo – “Tudo o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-o também vós aos outros” (Mt. 7, 12).
Ajudar e ser ajudados
3. Harry Moody, no seu Ethics in an Ageing Society (1992), introduz uma fábula que fala de um pássaro fêmea que voa em busca de comida, levando nas costas uma cria sua, a quem lhe pergunta: “Quando fores tão velha e débil como eu, me levarás sobre as tuas costas, como eu te carrego agora?” A cria responde: “Oh, não, mãe! Levarei a minha própria cria, como agora tu o fazes”. O ensinamento é que correspondamos à generosidade dos nossos predecessores sendo generosos com os nossos sucessores. Ora bem, é verdade que correspondemos assim ao que fizeram os nossos pais por nós? Moody deixa em aberto esta questão. Mas é algo bem claro que a resposta do passarinho é injusta, porque não pode ser justo que A não preste a sua ajuda a B que a necessita e que ajudou A quando este, antes, a necessitou. Certamente, a carga pode ser na ocasião maior: por um lado, respeito dos pais e, por outro, respeito dos sucessores; sendo assim é certo que se responda objectivamente a uma exigência dobrada da justiça.
4. Norman Daniels nos seus mais variados escritos defende que a justiça na distribuição dos recursos sociais exige um tratamento desigual nas distintas etapas etárias do homem. “Dado que as nossas necessidades mudam nas distintas etapas da nossa vida, queremos instituições que respondam a estas mudanças”. Este princípio deve respeitar-se dentro do ideal de uma sociedade em que todos sejam ajudados e todos ajudem, segundo as possibilidades respectivas em cada situação.
Em suma, Daniels procura manter um justo equilíbrio entre as cargas, defendendo que a pessoa tenha acesso a distintos recursos através das distintas etapas da sua existência.
O que os anciãos podem dar
Esquematizo esta temática através dos seguintes pontos:
a) Só existe uma classe de pessoas humanas que não têm deveres, apenas direitos. A esta classe pertence todo o nascituro e toda a criança de tenra idade e, no referente aos deveres em matéria económica, todo o homem que não tenha a capacidade de os cumprir (por carecer dos meios materiais necessários ou por algum impedimento ou perturbação de índole psíquica).
b) Os membros dos outros sectores sociais têm mútuos direitos e deveres, além das obrigações que moralmente os afecta em relação aos que pertencem ao grupo que só tem direitos.
c) Considerando o problema desde a perspectiva da situação dos anciãos, devem-se reconhecer direitos e deveres. Os primeiros centram-se no direito a um digno nível de vida material e espiritual. Logicamente, isto levanta alguns problemas económicos cuja solução, atendendo às concretas circunstãncias, é competência dos economistas e governantes. Este direito tem a sua razão mais essencial na dignidade da pessoa humana, sem mencionar o facto do que fizeram em beneficío da sua prole o que lhes dá um direito acrescentado ao já citado e baseado na dignidade pessoal de todo o homem. Os deveres correspondentes à pessoal dignidade humana dos anciãos centram-se na ajuda que estes podem prestar, segundo as suas capacidades e recursos, em três sentidos: o da prudência política, o da actividade laboral habitualmente exercida durante a sua vida e o da família. A ajuda que os anciãos podem prestar no âmbito da prudência política é exclusivamente para quem tenha desempenhado cargos públicos nos diversos níveis: incluindo o municipal ou local. No âmbito da actividade laboral os anciãos podem, com a sua experiência, ser úteis a quem exerce essa mesma actividade. As inovações das técnicas não tornam, por princípio, inúteis os ensinamentos dos anciãos, em especial dos mais inteligentes e avisados. Dentro das empresas, se os melhores serviços das pessoas de idade avançada são os ligados a cargos de direcção e estratégia geral da produção e do comércio, então deve-se reconhecer que, desde logo, não podem ser muitas estas pessoas. Mas, pelo contrário, é abundante o número de anciãos que podem prestar uma valiosa ajuda dentro do âmbito da família. Neste espaço os serviços dos avós está a ser, com efeito, aproveitado e reconhecido com crescente frequência, e até com agradecimento, por um considerável número de pais. A expressão “serviço de qualidade”, utilizada para se referir ao que os avós fazem na sua própria família ao tomarem conta dos seus netos, é um testemunho fidedigno disto mesmo. Na nossa sociedade os avós prestam serviços especiais às crianças, o que permite à geração dos pais ser economicamente produtiva. Quando a doença ou outra tragédia deixa os pais incapacitados para cuidar dos filhos, os avós (sobretudo, as avós) frequentemente prestam o cuidado e o apoio multigeracional essencial. É importante assinalar que em todas estas situações as pessoas de idade quase sempre estão dispostas a prestar ajuda, e sacrificam-se pelo bem da geração mais jovem.
Carlos Tavares

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